20.7.14

O meu Aurelião

O que tinha antes dele era um arremedo de dicionário. Não impunha respeito. Era dicionariozinho não só já amarrotado, como não trazia em si aquela aura enciclopédica. Serviu, no máximo, para os primeiros anos, para o que se chamava de ginásio. Quando o Aurelião me chegou em mãos foi uma festa para os olhos, o tato, o olfato e o palato que se deliciava com aquela dispensa repleta de palavras. Convivi com ele durante muitos anos. Silencioso, reservado, estava sempre disponível, era costumeiramente sábio. Abri-lo era sempre bom. Não só por encontrar o significado da palavra que procurava, mas por descobrir outras, sem querer, só por folhear as páginas e deixar que os olhos caíssem nas armadilhas das linhas ainda não lidas, que era o que ele mais oferecia. Quanto mais ele "amarelava", mais respeitoso e digno se mostrava. Como não era de edição ilustre, um dia, sem mais nem menos, sua capa começou a soltar-se. Aquela ferida tão visível impôs um manuseio ainda mais cuidadoso. A fragilidade da capa preta exibia contorno de conquista de batalha, de medalha, com o perdão da rima o meio da prosa, que isso é coisa bisonha. Mas como tudo, digamos, passa, como se diz indefinidamente, transformando a matéria do que foi vivido em citação vazia ou memória esquecida, o Aurelião ficou no exílio de um canto empoeirado. As visitas a ele reduziram-se. O tempo, esse que dizemos que passa, nos afastava. E, mais do que isso, para ocupar o seu papel surgiram os dicionários que não amarelam, que não juntam poeira, que não perdem a capa e ficam com a página de rosto exposta. Não há como saber ao certo qual foi o seu destino. Não foi doado a uma escola, não jogado no lixo ou incinerado. O meu Aurelião simplesmente desapareceu. Ou, como ele sugeriria na definição mais correta, cessou de existir, escondeu-se para sempre do brilho ofuscante da realidade.

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